Assim como Eckhart fala da necessidade de escavar a terra para favorecer o acesso à nascente da água, Rûmî fala no essencial trabalho de "polir, polir, polir" (Masnavi, Livro IV, 2469). Repete o termo várias vezes para mostrar esse diuturno trabalho de purificação interior, que é porta de acesso à verdadeira Perceção do Real. Num texto que escrevi sobre o místico afegão, presente no livro, No limiar do Mistério (Paulinas, 2004), eu relato uma das incríveis história descritas por Rûmî em seu Masnavi:
Não há como contemplar a morada do totalmente outro quando o coração está obstruído. Só depois de purificado de toda imperfeição é que este órgão passa a refletir o conteúdo profundo do mistério divino (M I, 1394-1396). Trata-se de um processo longo e complexo, que não se realiza sem a presença de um guia (pir). Um passo importante para esta purificação é a busca da humildade e do desapego, o constante trabalho de retirada da ferrugem que impede ao coração refletir de forma viva o mistério que nele habita:
"Sabes por que teu espelho não reflete? Porque a ferrugem não foi retirada de sua face. Fosse ele purificado de toda ferrugem e mácula, refletiria o brilho do Sol de Deus" (MI - Prólogo).
Para ilustrar esta idéia, Rûmi desenvolve a história da discussão entre os artistas bizantinos e chineses a propósito da arte da pintura (M I, 3467s).
Os dois grupos de artistas discutiam diante do Sultão sobre seus pendores particulares. Os chineses, de um lado, gabavam-se de serem os melhores artistas. Por sua vez, os bizantinos diziam ser portadores da perfeição. Para decidir a disputa, o Sultão destinou dois cômodos de uma casa para serem pintados por cada um. Os dois cômodos estavam um diante do outro.
Os chineses dedicaram-se com todo esforço e habilidade na arte de colorir a sua sala. Ao contrário dos chineses, os bizantinos recusaram todas as tintas, e optaram por limpar da melhor forma possível o seu cômodo, retirando dele toda a sujeira e ferrugem. As paredes tornaram-se puras e limpas como o céu.
Uma vez terminado o trabalho, os dois grupos sujeitaram-se à inspeção do Sultão. A sala dos bizantinos ganhou o prêmio. Estava tão profundamente polida que ela refletiu em suas paredes todas as cores da outra sala, com uma infindável variedade de tons e matizes.
Rûmî serviu-se desta história para ilustrar a importância da purificação de todos os atributos do eu que impedem captar a essência brilhante do próprio sujeito. Os bizantinos são para Rûmî, como os sufis, que se purificam de todos os desejos. A pureza do espelho pulido é como o coração que recebe inumeráveis imagens (MI, 3485).
Segundo Rûmî, aqueles que puliram o seu coração escaparam dos perfumes e cores, vindo a contemplar sem cessar a Beleza a cada instante (MI, 3492). É este trabalho que, segundo Rûmî, favorece o auto-esvaziamento místico e a pobreza espiritual (MI, 3497).
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